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Cabaret para Gatos

Numa vida onde não acontece nada, tudo pode ter o glamour de um cabaret felino.

Numa vida onde não acontece nada, tudo pode ter o glamour de um cabaret felino.

Cabaret para Gatos

09
Ago22

Todo este trabalho em me manter inteira

O meu peito abriu oficialmente a época dos despejos. Os sonhos voaram alto e encontraram quem os tratasse melhor. As rugas ensopadas em creme hidratante, pediram clemência. O telefone sempre ligado, optou pelo silêncio. O estranho número que me dá a idade, instalou-se na alma. A indignada solidão de porta e cortinas fechadas, fez efeito. As horas, no relógio da cozinha, pararam. Não lhe dei corda, perdi o interesse em tudo o que se mova depois das cinco para as cinco, como se lhe oferecesse um merecido descanso. E nem sei se parou assim à tarde ou de madrugada. Como eu, que não sei que mais hei-de fazer para que os dias parem para me dar sossego e mais tarde corda outra vez. Oiço as histórias dos outros, finjo empatia, coço os pés, esboço sorrisos. Ninguém me vê e contudo, há considerações sobre o meu aspecto. Há dias em que fujo e me misturo com as gentes que se aglomeram no comboio. Peço-lhes boleia nas suas vidas, nos seus ares de graça, nos seus dialectos, e sinto-me estrangeira. Sem mapa, sem guia. Como se não tivesse percebido que isto é um subúrbio e não o centro da cidade. Como se me guiassem as águas do Tejo, ainda. E mergulhasse nelas, por acreditá-las salgadas e longe do meu sofrimento. As estações terminais fascinam-me e por elas deambulo quando penso em regressar. Às vezes, não há retorno daquilo que somos, mesmo que possuamos um passe social. O terror da matéria que nos une é que um dia se esfume, algures num crematório longe da vista, longe do coração. Levando a cinzas os olhos e o coração e tudo o resto. Tenho pena do fim, mas também nunca solicitei o inicio. Talvez seja esta a única taluda que realmente nos saia: uma coisa de graça que nos é dada à nascença. E se tudo se resume a isto, com nuances de mais-ou-menos felicidade, o que nos sobra afinal? Levar os dedos à goela e esperar que o vómito saia. Tentar a morte com laranjas à noite e pepinos em Agosto. Experimentar a intoxicação através de cigarros proibidos e indigestas mistelas, tomando nota das vezes em que os outros nos desiludiram só mais um bocadinho. Esperar ser adulta, tomar-lhe as rédeas e perceber que há sempre alguém à porta a quem pedir licença. Ficar na cama, muito quieta, tendo sonhos assustadores ou apenas pesadelos. Ligar a luz da mesa de cabeceira, encher o quarto de tons de vermelho, enroscar-me um pouco mais nos lençóis, nas almofadas, nos seres que espalham pêlos pela casa. Fingir que esta não sou eu, que eu sou outra, que corre, que foge, que grita, que diz que se foda esta merda toda. Arfante me resigno. Arfante continuo viva.

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